Sobre a cultura do estupro e a violência que sofremos por sermos mulheres



No Brasil, uma mulher é estuprada a cada 11 minutos. E isso é o que é possível contar para colocar na estatística, já que em muitos casos a vítima se cala por medo de ser desacreditada, agredida verbalmente e ter sua dor ridicularizada. A demora ou ausência da denúncia por parte da mulher normalmente reduz as provas, já que a vítima é submetida a diversos exames para que PROVEM que ela foi estuprada.

Violência sexual é algo que deixa marcas eternas, nós mulheres temos medo de falar sobre o assunto porque na maioria das vezes, com base em um "padrão cultural" as pessoas tendem a não acreditar ou então tentar procurar antecedentes ou comportamentos em nós que justifiquem o crime do estupro do qual fomos vítimas. Ninguém avalia o passado do estuprador para saber se era comum esse comportamento e se há outras vítimas, a pesquisa é atrás do comportamento da vítima para saber se ela "deu algum motivo" para ser estuprada.

Na última semana o Brasil teve a infelicidade de ser o palco de uma barbárie. Uma adolescente de 16 anos estuprada por mais de trinta homens. As investigações estão em andamento e há muita especulação sobre o caso, mas o que mais me choca é a forma como as pessoas condenam ou desacreditam o depoimento da jovem pelo simples fato de não aprovarem o comportamento dela. O fato de ela ter sido mãe ainda criança, de frequentar bailes funk, de ser usuária de drogas NÃO JUSTIFICA um estupro. Mesmo porque ninguém se auto-estupra então o comportamento dela não deveria ser questionado nessa situação. Quer chamá-la para depor no futuro para saber do envolvimento dela com traficantes? OK, todos devem ser julgados por seus crimes, mas isso não deve ser apontado como motivo para ela ter sido estuprada. O motivo é único: existem estupradores e a sociedade os acoberta quando culpa a vítima.


"Mas ela gostava de fazer sexo em grupo!" E não há problema nenhum nisso, ela poderia ter escolhido e consentido em transar com 29 homens, se no 30º ela dissesse não e não parassem, é estupro. "Mas ela apareceu num outro vídeo transando com eles bem acordada" Ela poderia estar sob efeito de drogas, ou então ter consentido o ato inicialmente, ela pode sim ter saído de casa para transar com vários homens, mas fazer sexo, tocar, filmar e exibir na internet uma adolescente nua e desacordada é estupro e exposição e é crime sim. "Ah, mas ela teve um filho com 13 anos, vivia no baile, a própria mãe disse que ela fazia o que queria." E desde quando uma menina ter um filho ainda muito jovem faz com que qualquer pessoa possa tocá-la sem que haja consentimento? "Ela transava com traficantes em troca de drogas." Continua sendo um crime deles e não dela, é errado usar drogas? Sim, pode ser, mas tirar proveito de uma pessoa viciada que provavelmente estaria drogada ou sob efeito de abstinência é um crime maior ainda. Aliciamento de menores para o tráfico também é.

Há diversas variáveis do discurso e ele não é novidade, mesmo quando a vítima não tem os antecedentes desta menina o primeira atitude, infelizmente, é sempre questionar e nunca acolher. Em nenhum momento digo que ela é santa, mesmo porque não conheço ninguém sem pecados, e se parte da história dela for mentira, isso vai ser descoberto e ela vai pagar também, mas ela foi, de acordo com a delegada responsável vítima de estupro sim, só é necessário avaliar a extensão do crime e também foi vítima quando divulgaram suas imagens. E quando você compartilha vídeos de revenge porn no whats app ou por e-mail está contribuindo com esse tipo de crime. Pessoas só divulgam esses vídeos porque sabem que eles são repassados e têm público. Chega de exposição.


O site Lugar de Mulher publicou um texto muito interessante sobre cultura do estupro e é triste ver gente que ainda não acredita nisso. Um exercício rápido: quantas vezes uma mulher já foi assediada na rua e alguém ao ver a cena olhou e disse: "Também, com essa roupa curta, quer o que?" Quantas vezes você, mulher, trocou de roupa antes de sair (ou você, homem, viu uma mulher fazendo isso) por medo de ser assediada? Quantas vezes uma mulher foi abusada por estar alcoolizada e o julgamento foi de que "se não tivesse bebido não tinha acontecido". É absurdo que nós tenhamos que mudar nossos hábitos porque a sociedade aponta que se tivermos determinada atitude estaremos pedindo por um estupro. O crime só ocorre por culpa do criminoso, não da vítima. A cultura do estupro existe e é silenciadora. Está ligada a papéis de gênero e dá respaldo para que estupradores acreditem ter domínio sobre o corpo de toda mulher que cruza seu caminho e é o que impede que muitos estupros sejam denunciados.






A própria mídia tenta mudar o nome do crime. Entitulam notícias sobre estupro com o título de homem é acusado de fazer sexo forçado, mas não chamam do nome real: ESTUPRO. Quando uma mulher "nega" sexo ao parceiro, na verdade ela se defendeu de um estupro. Mudar o nome da situação para não falar do problema é mais uma das faces da cultura do estupro! Assim como se uma mulher quis transar e no meio do caminho mudou de idéia, se ela for forçada a continuar, continua sendo estupro. Mas toda vez que se toma conhecimento de uma acusação de estupro, o senso comum faz com que as pessoas e a própria mídia comecem a questionar os hábitos da mulher, vítima de violência, ao invés de tentar acolher essa mulher que já estava acuada e com medo de denunciar.

Uma coisa que precisa ser esclarecida é que embora muita gente ainda acredite que o estupro só é um estupro quando a mulher é atacada por um desconhecido na rua e arrastada para um terreno abandonado, muitas mulheres têm sido estupradas por seus companheiros, por amigos, parentes e outros conhecidos. Então dizer que "com certeza foi consensual, já que eles são amigos/namorados/casados (insira aqui qualquer grau de relacionamento)" não cola. O vídeo abaixo, assim como a Teoria da Pizzaria da Clara Taveira, postada acima ilustra de forma bem didática a questão do consentimento e sua importância para tudo na vida, incluindo sexo.



Aos 20 anos eu sai de casa para ajudar um colega a estudar para uma prova de um concurso público. Era um ex ficante meu da época da escola. Ainda assim, não vi nenhum problema já que a família dele estaria em casa e íamos estudar. Ele me buscou em casa e ao fim do dia veio me trazer de volta. No caminho ele me roubou um beijo. Já estava errado por que eu não queria um beijo, então eu fiquei irritada, disse a ele que não deveria ter feito aquilo e continuamos o caminho. Porém mesmo que eu tivesse dado o beijo por vontade própria isso não daria o direito de ele fazer o que fez a seguir. Próximo da minha casa ele entrou em outra rua, travou as portas do carro e tentou transar comigo, eu pedi para ele parar. Disse que eu não queria e ele disse que SABIA QUE EU QUERIA E QUE EU ESTAVA FAZENDO DOCE, ALIÁS, NO FINAL EU IA ATÉ GOSTAR. Ele já tinha tirado parte da minha roupa e estava em cima de mim. Eu comecei a chorar, pedindo pra ele parar, tentando tirar ele de cima de mim. Comecei a gritar, e por alguma razão que até hoje não sei, já que não nos falamos mais, ele parou, voltou para o lugar dele e disse que ia me deixar em casa. Na porta de casa sai do carro correndo e demorei anos para falar disso com alguém.

Podem achar que não foi abuso porque ele não consumou o fato, mas me senti violada de uma forma que nunca tinha me sentido antes. Impotência é a sensação de você perceber que nada do que você faça vai te tirar daquela situação, foi assim que me senti naquele momento. Ele poderia ter conseguido e eu com certeza teria medo de contar a alguém, pois seria mal interpretada. Chorei durante dias e me questionei se não teria feito algo para dar abertura para a atitude dele, mas não, eu não fiz e não existe essa de "ela deu a entender que queria", porque nesse caso é a interpretação do abusador que vai sempre pender para o lado que é favorável para ele. Ainda hoje, 6 anos depois, as vezes acordo desesperada de um pesadelo com esse dia. Essa não foi a única vez em que alguém tentou transar comigo só porque eu aceitei uma carona ou porque estava em uma festa, algumas vezes alcoolizada. Nenhuma das pessoas que ignorou o meu NÃO era um estranho, ele achou que tinha direito até eu sair correndo, ou chamar alguém. E na maioria das vezes eu nem de short estava, era calça e alguma blusinha ou camiseta. Assim como já fui chamada de vagabunda por estar andando na rua, exercendo meu direito de ir e vir, usando um short num calor de 35ºC. Mas eu poderia estar de biquíni. Eu não tenho culpa, nenhuma de nós tem. Eles agem de acordo com um tal papel de homem, o selo macho de qualidade que por ser aprovado e aceito pela sociedade faz com que nos calemos.





A Fê escreveu um texto ótimo também e que me deu a força que faltava para vir aqui conversar com vocês, inclusive usei algumas das imagens que ela usou por ter achado as mesmas muito enriquecedoras para o diálogo. Eu quis escrever esse texto e dividir minha experiência porque não dá mais para ver o sofrimento de todas as mulheres minimizado e a busca por uma justificativa para uma coisa onde a única justificativa é a existência de um abusador. Também não estou tentando comparar minha dor com a da menina no Rio de Janeiro, a minha intenção é mostrar que TODAS somos vítimas ou seremos da cultura do estupro e de toda essa violência comentida contra nós. Eu sinto Solidariedade e Empatia, não quero ver ninguém sendo condenado quando é vítima, todas estamos sujeitas a termos nosso comportamento sendo usado como argumento para justificar porque fomos vítimas.

Lembra quando eu comecei o texto dizendo que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada? Desde o momento em que esse texto foi iniciado até agora quando foi publicado foram cerca de 24 horas, o que significa que aproximadamente 130 mulheres foram estupradas. Não dá para ficar calada diante disso.

Comentários

  1. O ser humano é um bicho bizarro! Quanto mais acesso á informação, mais estúpido fica.
    Eu tenho crise do pânico de andar sozinha no Brasil pq um Angolano me agarrou. Foi assustador.
    Arrumar argumentos de 'merecia/pedia' é acobertar uma psicopatia masculina '-'
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    1. O trabalho de conscientização é bem de formiguinha.
      Fico triste que você também tenha sido vítima. Estamos expostas a isso sob aval de uma galera que sempre vai tentar descobrir o que fizemos para estar nessa situação e não o que fizeram conosco.

      Força!
      Um beijo!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Christian, eu havia lido seu comentário antes, e acho ótimo que você tenha essa consciência. Quando sou contra a cultura do estupro em nenhum momento sou contra os homens. Acredito que quando um homem sabe que deve respeitar as mulheres e de alguma forma multiplica isso para seu círculo, está sendo feito um trabalho incrível de desconstrução.

      Parabéns pela sua forma de pensar!

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  3. Nossa...Ler esse texto, essas palavras,...Acho que ninguém deveria passar por isso, e ainda assim muita gente passa todos os dias em um cenario onde não vemos que não vai mudar tão cedo, e pessoas vão continuar sofrendo com isso. E nos sentimos impotentes para uma solução para que não aconteça com quem amamos e se preocupamos.

    Gostaria de ter uma explicação, mas não existe é deplorável e nojento...é achar que seus desejos e necessidades estão acima das outras pessoas, é ser um animal que ainda não aprendeu a viver em sociedade.

    Gostaria de pedir desculpas paras todos que sofreram em nome de todos os homens, mas não existe desculpa...

    Parabéns por ter força e compartilhar, tirar do peito esse peso.

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